SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
A infecção pelo novo coronavírus causador da COVID-19, primeiramente diagnosticada em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, foi declarada como pandemia em março de 2020 e tornou-se uma emergência de saúde pública mundial, afetando especialmente a Europa e as Américas do Norte e do Sul.
Atualmente, temos mais de 4 milhões de casos no mundo, quase 200 mil casos no Brasil e mais de 300 mil mortes no mundo, devendo ainda ser levado em conta todas as dificuldades com os testes e as subnotificações.
PATOGENIA
O novo coronavírus é disseminado principalmente por gotículas respiratórias e tem o potencial de causar desconforto respiratório grave, resultando em pneumonia, síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA; por isso também chamado – SARS-CoV-2), acidose metabólica refratária, injúria miocárdica, distúrbios da coagulação, disfunção de vários órgãos (como falênia renal) e morte. A literatura recente sobre o vírus centrou-se nas manifestações respiratórias da doença, entretanto, diversos estudos durante as últimas décadas mostraram que vários vírus respiratórios, incluindo o coronavírus (CoVs), apresentam neurotropismo, com capacidade de se espalhar para o sistema nervoso central (SNC), determinando dano neuronal por replicação viral direta ou por resposta imunológica exacerbada do paciente à infecção.
Existem alguns mecanismos principais pelos quais os vírus podem infectar o SNC. A via hematogênica seria relacionada à passagem do vírus através da barreira hematoencefálica através de células endoteliais microvasculares e pericitos por vesículas endocíticas ou carreado por leucócitos de forma oculta. A forma neuronal retrógrada seria quando o vírus invade neurônios periféricos, como neurônios dos receptores olfativos, receptores do nervo trigêmeo da cavidade nasal ou fibras sensoriais do nervo vago através de transporte axonal retrógrado (por exemplo, dos pulmões, coração e trato gastrointestinal), alcançando então o tronco encefálico e o restante do SNC. Algumas cepas de CoVs demonstraram ser capazes de se propagar entre os neurônios, possivelmente por transmissão sináptica.
Os estudos revelaram que a enzima convertora de angiotensina 2 (ACE2) é o principal receptor do SARS-CoV na célula hospedeira. A ACE2 é amplamente expressa no cérebro humano, principalmente nas células da glia, mas também nos núcleos do tronco encefálico que regulam os sistemas cardiorrespiratório, reticular ativador e no córtex motor. Essa enzima converte a angiotensina II (forma ativa) em angiotensina 1-7 (inativa). Dessa forma, o vírus prejudica a expressão dessa enzima, levando a uma piora do controle pressórico e maior predisposição a picos hipertensivos. Independente do local de entrada, há a possibilidade de o destino final do SARS-CoV-2 ser os núcleos solitário e ambíguo no bulbo, que desempenham um papel fundamental na modulação da função respiratória, provavelmente contribuindo para o distúrbio respiratório grave. Uma vez dentro do SNC, foi demonstrado que a resposta imune produz uma tempestade de citocinas que, junto do dano citopático direto pelas partículas do vírus, pode levar a doenças neurológicas como encefalites, paralisia flácida aguda, crises convulsivas ou encefalopatia necrosante (ANE), em indivíduos susceptíveis.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Um estudo multicêntrico publicado na revista Radiology em maio deste ano analisou 749 pacientes internados com COVID-19 em oito hospitais (europeus e norte-americanos), sendo que 235 pacientes (31%) necessitaram de internação em unidade de terapia intensiva (UTI). Cinquenta dos 235 pacientes de UTI (21%) desenvolveram sintomas neurológicos.
A ressonância magnética (RM) foi realizada em metade dos pacientes com sintomas neurológicos, sendo que em 37% havia anormalidade de sinal cortical na sequência FLAIR. Anormalidades de sinal em FLAIR na substância branca subcortical e profunda foram, cada uma, presentes em 3 pacientes. Outros achados intracranianos agudos na ausência de anormalidade do sinal cortical incluíram 1 paciente com trombose aguda do seio transverso e 1 paciente com infarto agudo no território da artéria cerebral. Em 56%, a RM não revelou nenhum dano intracraniano agudo ou relacionado à COVID-19.
Os neurorradiologistas irão, sem dúvida, encontrar um número crescente de casos na prática diária. Portanto, eles devem estar familiarizados com o potencial acometimento neurológico, seja por mecanismos diretos ou indiretos. As manifestações neurológicas do COVID-19 podem ser agrupadas em várias categorias, incluindo insultos cerebrovasculares agudos, sintomas relacionados à infecção intracraniana, sintomas do sistema nervoso periférico e sintomas neuromusculares.
CEFALEIA
Um estudo chinês publicado no The New England Journal of Medicine constatou que 34% dos pacientes queixaram-se de dor de cabeça. O sintoma pode aumentar a dificuldade diagnóstica se a cefaléia é o único sintoma quando um paciente procura atendimento médico. Assim, além de seguir protocolos de rotina, os neurologistas devem perguntar sobre os dados médicos e epidemiológicos dos pacientes, especialmente para aqueles que tiveram febre e / ou histórico de contato com casos suspeitos ou confirmados. Para casos atípicos, exames de sangue, PCR em swab nasal e TC de tórax devem ser realizados.
DOENÇA CEREBROVASCULAR AGUDA
O grupo de maior risco para manifestações graves da doença são os idosos e pacientes com comorbidades, que já têm fatores de risco para doença cerebrovascular. Evidências mostram que os pacientes críticos frequentemente apresentam distúrbios da coagulação com prolongamento do tempo de protrombina e amento do d-dímero, predispondo um estado de hipercoagubilidade, favorecendo a ocorrência de tromboses arteriais e venosas.
Além disso, considerando que a ACE2 é um receptor de entrada para SARS-CoV- 2, pacientes com hipertensão arterial sistêmica que já apresentam redução da expressão dessa enzima pela condição de base podem ter maior risco de picos hipertensivos e suas consequências, como hemorragia intracraniana.
Uma publicação recente de um serviço de Nova-York relatou cinco casos de AVC isquêmico em pacientes jovens (< 50 anos). Estudos retrospectivos de Wuhan mostraram a incidência de AVC isquêmico em pacientes hospitalizados em cerca de 5%, com o paciente mais jovem apresentando 55 anos. Nesse cenário, a coagulopatia e disfunção endotelial vascular têm sido propostas como complicações relacionadas ao Covid-10 que podem justificar essa incidência aumentada de AVC.
SINTOMAS RELACIONADOS À INFECÇÃO INTRACRANIANA
Sintomas como dor de cabeça, epilepsia e distúrbio de consciência foram descritos na COVID-19. O primeiro caso de COVID-19 com encefalite foi relatada em Pequim, China. Este paciente apresentou convulsões, soluços persistentes, pupilas hiporresponsivas, sinal de Babinski bilateral e sinais de irritação meníngea. A punção lombar mostrou aumento da pressão de abertura, com parâmetros bioquímicos e citológicos normais, porém com PCR positivo para SARS-CoV-2.
Pacientes com COVID-19 e desregulação do sistema imunológico podem ser co-infectados com outros patógenos e isso pode complicar ainda mais a sua condição. Em um relato de caso recente, publicado por Poyiadji et al., autores descrevem uma paciente com COVID-19 do sexo feminino com quase 50 anos apresentando características sensoriais e de neuroimagem típicas da encefalite necrotizante aguda. O acometimento neurológico é geralmente acompanhado de envolvimento simétrico dos tálamos, regiões subinsulares e tronco cerebral. Patologicamente, essas lesões são caracterizadas por componentes necróticos e hemorrágicos. Sabe-se que a tempestade de citocinas tem um papel central na patogênese dessa doença.
SINTOMAS DO SISTEMA NERVOSO PERIFÉRICO
Um estudo em Wuhan mostrou que hipogeusia e hiposmia estavam entre as queixas mais comuns dos pacientes Outros sintomas do sistema nervoso periférico incluem déficit na função visual e neuralgia. Até agora, não foram relatadas alterações eletroneuromiográficas.
A Síndrome de Guillain-Barré é um subtipo de polineuropatia periférica aguda e a causa mais comum de paralisia flácida progressiva ascendente. Apresenta caráter autoimune e acomete principalmente a mielina da porção proximal dos nervos periféricos, de forma aguda ou subaguda. Já foram descritos casos em pacientes com SARS-CoV-2, com intervalo de 5-10 dias do início dos sintomas sistêmicos e neurológicos. Invariavelmente, a pesquisa de PCR no LCR é negativa, inferindo o papel importante da resposta imunológica nesses pacientes.
SINTOMAS MUSCULARES
Muitos pacientes apresentaram fadiga, dor muscular, miopatia (com aumento dos níveis de enzimas musculares) e/ou polineuropatia, necessitando de tratamento e reabilitação apropriados. Essas alterações devem estar relacionadas à própria ação do vírus, à atividade inflamatória sistêmica exacerbada, devendo-se ainda considerar o uso crônico de drogas como bloqueadores neuromusculares, visto que esses pacientes críticos apresentam interação prolongada.
IMPACTO SECUNDÁRIO RELACIONADO A SIRS
Deve ser fortemente considerado o impacto secundário do COVID-19 no SNC em pacientes gravemente doentes, como lesão cerebral anóxica como resultado da SDRA, hemorragia cerebral como resultado de trombocitopenia e coagulação intravascular disseminada, acidente vascular isquêmico por tromboses arteriais e venosas e embolia gasosa e gordurosa em pacientes com sepse.
Em uma série de casos de 19 não sobreviventes da doença grave de COVID-19 de um serviço de Bruxelas (Bélgica), a ressonância magnética cerebral pós-mortem demonstrou padrões sugestivos de vasculopatia intracraniana em 4 pacientes: micro e macrorragia subcortical (2 pacientes), edema corticossubcortical e alterações sugestivas de síndrome da encefalopatia reversível posterior (PRES, um paciente) e alterações inespecíficas da substância branca profunda (um paciente).
A linfohistiocitose hemofagocítica (LHH) representa uma síndrome de ativação e proliferação desordenada de macrófagos e histiócitos, determinando uma resposta exacerbada com produção de citocinas e envolvimento de múltiplos sistemas em virtude da hiperativação hemofagocítica. No SNC, manifesta-se com achados inespecíficos, incluindo anormalidades de sinal na substância branca periventricular e redução do volume encefálico. Diversos agentes virais foram envolvidos na patogênese da forma secundária da LHH, especialmente Epstein-Barr, HIV e CMV, sendo também associado a casos de coronavírus.
CONCLUSÃO
Embora amplamente conhecida, nossa compreensão da doença pelo novo coronavírus ainda é limitada. Como ela continua a se espalhar pelo mundo, os médicos devem considerar este vírus como um possível agente etiológico em pacientes com sintomas neurológicos novos, progressivos ou agravados.
As possíveis manifestações de imagem do COVID-19 no cérebro e na medula espinhal são variadas e heterogêneas. Embora seja de inequívoca importância, a imagem deve ser razoável e não excessiva, tendo em mente que pacientes hospitalizados costumam ser críticos, especialmente do ponto de vista respiratório, devendo ser proporcionado um ótimo atendimento, preservando recursos hospitalares e minimizando a exposição da equipe de radiologia, como técnicos, biomédicos, auxiliares e enfermeiros. Com o tempo, as investigações robustas e em larga escala irão esclarecer o espectro neuropatológico e os mecanismos exatos de lesões neurológicas em pacientes com COVID-19.
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